segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Guestpost: O corpo é meu

Por João Antonio Guerra,

Era um peso fortemente, e ela pensando nos poréns de Poliana, com as pessoas em torno, as pisadas em tornozelos. Um aperto no peito, desses que não nos descem.
Deixa cair não!  disse a outra, anônima, quando já tinha caído. Ai, esse meu cansaço nos braços — Ana se corrigiu, correu, catou o cartaz do chão; um pouco pisado, mas só. Continuaram gestando aquelas ideias, carregando-as nos braços, muito mulheres. Pois a marcha mandava, e até implorava: a pé, vamos implodir a cidade, começando por esta avenidazinha.
Mas Poliana felicitava desesforçada, em casa: o sorriso e o anelar, naquela semana mesmo, anunciaram: ela se casaria tanto! dali a dois meses. Ana saboreava um abandono, que em seu saber aquela aliança não era com ela, mas com nações estranhas. Sob um sol de capital, a pintura sobre a pele secando e coçando, Ana era sozinha com quinhentos em marcha.
Naquele dia, mais cedo, Ana deixando a casa, eu ouvi
            — Marcha de putas.
            sua mãe ninando o neto, contente em seu dever
            — Mamãe um dia cria juízo.
            de avó que cuida do bebê
            — Mas até lá, vovó fica com você.
quando a mãe está fora. E a vovó virava a criança de costas para a janela e a mãe além, lá embaixo, na calçada — será um homem, custe o que custar.


Vi: a mãe também tinha o pequeno nas ideias; pensava para ele planos de paz que não batiam, e se cansava. Seus braços bambos, um vento veio de improvável, varreu o cartaz para longe e para sempre, uns quatro passos de distância. O sol escorria pelo pescoço e lavava embora também a tinta, o corpo que era dela. Porque antes, ainda no parto das placas e cartazes, todos ajoelhados no chão, baldes de confissões e cores nas mãos, perguntaram a Ana quais seriam suas palavras.
A blusa abandonada, pintaram-nas no peito livre, onde também estava o pequeno Paulo, sua vovó virulenta e — braço dado a um homem de feições familiares — Poliana, a que não precisava se pintar. Ela seria sempre casada, com um quê de completa, em felicidades fáceis. Já Ana, por outro lado, deu de dizer

            — O corpo é meu.

e foi o que ficou feito na pele. No meio da multidão que marcha, ela raspava as palavras com as unhas, chamando o vermelho, que o corpo era dela e coçava pesado. Foi só sem os seios que Ana conseguiu vazar o peso fora. Deixou os dois doendo sozinhos na rua e debandou para casa.
De vago, vi que mais uma menina catou o cartaz, chacoalhando dele as dúvidas. Mas não prestei mais atenção na menina. Ana, quando não era cansada de todxs, me desaprovaria dizendo que estou presente somente pela nudez — e estaria certa. Peguei-lhe os peitos dos paralelepípedos, ajeitei-os no sutiã e marchei pra fora da marcha.



Um velho amigo escreveu esse conto e endereçou a mim dizendo que detestou o que havia escrito - eu amei. O corpo é meu, surgiu (realmente no sentido abiogênico da palavra) baseado nas Marchas das Vadias e em todo o processo de demanda por autonomia de seus corpos, por parte dessas mulheres (vadias). "Mandar para Andressa", estava escrito no canto da página. Fiquei encantada por ter sido a primeira Vadia a ler esse conto e agora o compartilho com vocês.

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