domingo, 1 de abril de 2012

Heaven on Earth, Chand reescrevendo Eva



“Hell is better than a heaven with no dignity”
Sogro de Chand, antes da prova da serpente

Uma jovem deixa seu país para casar com um estranho e tem que lidar com os problemas do casamento arranjado. Sinopse não tão atrativa, que poderia ser de uma novela ou conto de fadas imperialista. Nada surpreendente. E o filme “Heaven on Earth”, do diretor indiano Deepa Mehta, não parece lá muito fantástico aos olhos mais críticos. Mas quem se deixa seduzir pela música e dança da cena inicial, vai até o fim nos enredos de Chand.


O contexto é simples, família indiana migra para o Canadá, pais idosos, irmã e cunhado desempregado com dois filhos são sustentados por Rocky. Chega a idade do casamento para ele e uma noiva é enviada da Índia. No começo o rapaz se mostra tímido e encantado pelos belos olhos de Chand (eu diria olhos tão belos quanto os de Capitu); mas já na noite de núpcias começa a rotina de tapas, socos e chutes.

A dominação de Rocky sobre Chand é bem amarrada; apesar da inteligência aguçada e formação, a moça trabalha como operária numa fábrica de camisetas e todo o seu dinheiro é entregue nas mãos do marido. Em casa, a sogra mina qualquer tentativa de troca entre os dois. A senhora de aparência tão frágil lembra qualquer vilã ardilosa das histórias infantis. Os únicos que talvez demonstrem certa sensibilidade quanto à situação dela são o sogro, já senil, e a sobrinha, apavorada sempre que presencia uma cena de violência doméstica.

No entanto, o que há de mágico no filme são as cenas nas quais Chand narra a própria história em pequenos contos, utilizando figuras da simbologia indiana. A maior parte das cenas de contos está em preto e branco e contam com uma fotografia pontualmente bela, soam como orações.

Seguindo os conselhos de uma colega de trabalho, Chand tenta com uma raiz-forte, enfeitiçar Rocky, mas surge de seu desejo uma cobra, que se transfigura no marido. E esse ser mágico segue acalentando-a sempre que sofre violência, abraçando seu choro, cuidando dos ferimentos. De início ela não percebe que aquele não é seu marido, mas depois, aceita a serpente como único ungüento. O desfecho é brusco, mas necessário. No passo que Chand escolhe dar cabe todo um futuro e isso é que faz a história tão bem enlaçada.

Na antropologia o enredo bíblico da criação dos seres humanos é estudado há muito tempo, na tentativa de desvendar a simbologia cultural que envolve nossa sociedade. Roque de Barros Laraia ressalta o papel feminino no Gênesis:

“A principal mensagem do conjunto de mitos produzidos por uma sociedade de pastores e guerreiros nômades, fortemente patriarcal e patrilinear como demonstram as genealogias do Gênesis, imbuída de uma ideologia machista, refere-se exatamente à questão da mulher vista como um ser extremamente perigoso, necessitando portanto ser fortemente controlada.” (LARAIA, 1997)

Se em nossa mitologia temos Eva e a serpente como inimigas, com Chand é diferente, o olhar oriental traz a víbora como sinônimo de justiça divina, algo semelhante à deusa grega Nêmesis.

As duas mulheres das quais falo são metonímias de uma concepção acerca da mulher e seu papel social. Eva e seu envolvimento com a serpente levam a humanidade à mortalidade, traz a ela a dor do parto e a seu marido o suor do trabalho; mas ao mesmo tempo, é a saída do Éden que faz nascer a humanidade. Para Chand a serpente é de fato o Céu na Terra (em referência ao título do filme), a ilusão tão mais doce que a realidade provoca nela a consciência necessária para abandonar os maus-tratos. Seria Chand uma Eva do século XXI? A mulher que abandona o falso paraíso (não seria o próprio Jardim do Éden uma ilusão?) e resolve viver do próprio suor, a mulher que tem na serpente uma amiga.

Nas orações de Chand, seus pequenos contos narrados em sussurros, temos uma mostra da força tão natural às mulheres. Essa coragem sutil e simples, o ritmo que pode ser tempestivo e ao mesmo tempo tranqüilo.

Todos esses diálogos e muitos outros podem ser feitos, essa é a magia das análises. Aqui apenas humildes idéias e a indicação com do filme indiano que mais me cativou nos últimos tempos. 




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


LARAIA, Roque de Barros. Rev. Antropol. vol.40 n.1 São Paulo, 1997

2 comentários:

  1. Excelente crítica! Fiquei com vontade de ver o filme! Com o fim do MegaUpload, onde eu consigo ele? :D

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  2. Olá, Maria!

    Eu tive a sorte de ver o filme na tevê, mas encontrei um blog que tem o link no 4shared: http://www.4shared.com/file/2bDrHSSc/Heaven_On_Earth__2008_.html

    Assista mesmo, vale a pena!

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