“Hell is better than a heaven with no dignity”
Sogro de Chand, antes da
prova da serpente
Uma jovem deixa seu país para casar
com um estranho e tem que lidar com os problemas do casamento arranjado. Sinopse
não tão atrativa, que poderia ser de uma novela ou conto de fadas imperialista.
Nada surpreendente. E o filme “Heaven on Earth”, do diretor indiano Deepa Mehta,
não parece lá muito fantástico aos olhos mais críticos. Mas quem se deixa
seduzir pela música e dança da cena inicial, vai até o fim nos enredos de
Chand.
O contexto é simples, família
indiana migra para o Canadá, pais idosos, irmã e cunhado desempregado com dois
filhos são sustentados por Rocky. Chega a idade do casamento para ele e uma noiva
é enviada da Índia. No começo o rapaz se mostra tímido e encantado pelos belos
olhos de Chand (eu diria olhos tão belos quanto os de Capitu); mas já na noite
de núpcias começa a rotina de tapas, socos e chutes.
A dominação de Rocky sobre Chand é
bem amarrada; apesar da inteligência aguçada e formação, a moça trabalha como
operária numa fábrica de camisetas e todo o seu dinheiro é entregue nas mãos do
marido. Em casa, a sogra mina qualquer tentativa de troca entre os dois. A
senhora de aparência tão frágil lembra qualquer vilã ardilosa das histórias
infantis. Os únicos que talvez demonstrem certa sensibilidade quanto à situação
dela são o sogro, já senil, e a sobrinha, apavorada sempre que presencia uma
cena de violência doméstica.
No entanto, o que há de mágico no
filme são as cenas nas quais Chand narra a própria história em pequenos contos,
utilizando figuras da simbologia indiana. A maior parte das cenas de contos
está em preto e branco e contam com uma fotografia pontualmente bela, soam como
orações.
Seguindo os conselhos de uma colega
de trabalho, Chand tenta com uma raiz-forte, enfeitiçar Rocky, mas surge de seu
desejo uma cobra, que se transfigura no marido. E esse ser mágico segue
acalentando-a sempre que sofre violência, abraçando seu choro, cuidando dos
ferimentos. De início ela não percebe que aquele não é seu marido, mas depois,
aceita a serpente como único ungüento. O desfecho é brusco, mas necessário. No
passo que Chand escolhe dar cabe todo um futuro e isso é que faz a história tão
bem enlaçada.
Na antropologia o enredo bíblico da
criação dos seres humanos é estudado há muito tempo, na tentativa de desvendar
a simbologia cultural que envolve nossa sociedade. Roque de Barros Laraia
ressalta o papel feminino no Gênesis:
“A principal mensagem do conjunto de mitos
produzidos por uma sociedade de pastores e guerreiros nômades, fortemente
patriarcal e patrilinear como demonstram as genealogias do Gênesis, imbuída de
uma ideologia machista, refere-se exatamente à questão da mulher vista como um
ser extremamente perigoso, necessitando portanto ser fortemente controlada.” (LARAIA,
1997)
Se em nossa mitologia temos Eva e a
serpente como inimigas, com Chand é diferente, o olhar oriental traz a víbora como
sinônimo de justiça divina, algo semelhante à deusa grega Nêmesis.
As duas mulheres das quais falo são
metonímias de uma concepção acerca da mulher e seu papel social. Eva e seu
envolvimento com a serpente levam a humanidade à mortalidade, traz a ela a dor
do parto e a seu marido o suor do trabalho; mas ao mesmo tempo, é a saída do
Éden que faz nascer a humanidade. Para Chand a serpente é de fato o Céu na
Terra (em referência ao título do filme), a ilusão tão mais doce que a realidade
provoca nela a consciência necessária para abandonar os maus-tratos. Seria
Chand uma Eva do século XXI? A mulher que abandona o falso paraíso (não seria o
próprio Jardim do Éden uma ilusão?) e resolve viver do próprio suor, a mulher
que tem na serpente uma amiga.
Nas orações de Chand, seus pequenos
contos narrados em sussurros, temos uma mostra da força tão natural às
mulheres. Essa coragem sutil e simples, o ritmo que pode ser tempestivo e ao
mesmo tempo tranqüilo.
Todos esses diálogos e muitos
outros podem ser feitos, essa é a magia das análises. Aqui apenas humildes idéias
e a indicação com do filme indiano que mais me cativou nos últimos tempos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LARAIA, Roque de Barros. Rev. Antropol. vol.40 n.1 São Paulo, 1997
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LARAIA, Roque de Barros. Rev. Antropol. vol.40 n.1 São Paulo, 1997
Excelente crítica! Fiquei com vontade de ver o filme! Com o fim do MegaUpload, onde eu consigo ele? :D
ResponderExcluirOlá, Maria!
ResponderExcluirEu tive a sorte de ver o filme na tevê, mas encontrei um blog que tem o link no 4shared: http://www.4shared.com/file/2bDrHSSc/Heaven_On_Earth__2008_.html
Assista mesmo, vale a pena!