quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Uma mulher chamada Fantine



                Victor Hugo é um dos maiores autores do século XIX. Seus livros mais famosos são “O Corcunda de Notre Dame” e “Os Miseráveis”, que foram transformados em filmes, peças e musicais. “Os Miseráveis” foi recentemente transformado em filme, que assisti. Apesar de ter diversas considerações sobre ele, não é sobre o filme em si que quero comentar, mas sobre a habilidade de Victor Hugo e de Claude-Michel Schönberg em transformar seus personagens não em pessoas, mas em emblemas de situações sociais. Posto que ainda não li a versão em livro d’Os Miseráveis, apenas conheço o musical e, agora, o filme de 2012, poderei apenas comentar sobre a adaptação.

                Ponderando que Victor Hugo era um liberal e acreditava na superação das contradições da sociedade capitalista, apesar de desprezar as desigualdades sociais (que atribuía a resquícios do Antigo Regime), minha análise do musical Os Miseráveis não tem nenhuma correlação direta com as ideias do autor, apenas é uma análise plausível (creio).
                Javert não é simplesmente um policial, ele é a própria polícia, o próprio exército do sistema burguês e, ao perceber que seu trabalho é manter uma ordem arbitrária que o coloca contra toda luta popular, não tem alternativas senão eliminar a si mesmo. Como personagem dramático, se suicida, mas seu suicídio pode ser interpretado como o fim de toda e qualquer polícia em que seus servidores desenvolvem consciência de classe (destaque para a cena emblemática de Javert depositando uma medalha de honra no peito de Gavroche).
                Jean Valjean é o ícone da ideologia de Hugo. O proletariado tornando-se burguesia e, como burguês, trabalhando para eliminar as contradições sociais. Os estudantes da barricada são certamente inspirados em jovens blanquistas com os quais Hugo conviveu, que acreditavam que um levante de uns poucos inspirados (sem sindicato, sem partido organizado, sem... nada, só inspiração) conduziria a massa e erraram feiamente em seus cálculos.
                Mas a personagem que me fascina e sobre a qual é interessante falar agora no Chatas é Fantine (depois eu escrevo um texto sobre Eponine). Ela é uma mulher do povo, marginalizada pelo sistema burguês (que, ainda falando arquetipicamente, morre mesmo com os esforços do bom burguês para salvá-la. Em minha análise, podemos dizer que a burguesia não pode superar as contradições do sistema e libertar o proletariado) e oprimida duplamente. É oprimida por ser proletária e é oprimida por ser mulher. Com oportunidade de emprego negada por ser mãe solteira, é empurrada à prostituição (“já era uma vagabunda mesmo”) e a uma precarização ainda maior. O assédio sexual, o assédio moral e o abandono são constantes em sua vida.
                Fantine não é apenas Fantine. Ela é muitas das mulheres que ainda andam por aí. No final de “L’Apollonide – A casa dos amores de tolerância”, temos bem essa conexão entre passado e presente. A prostituta do começo do século XX sai da casa e transforma-se em uma jovem de jeans debruçada sobre a janela de um carro. O que, de fato, mudou para as Fantines de nosso mundo nesses cento e poucos anos entre o lançamento d’Os Miseráveis e o lançamento deste filme, sua adaptação?
                Na maior parte do mundo, a prostituição é ilegal e, nos países em que é legalizada, beneficia muito mais cafetões e grandes empresários do sexo do que as prostitutas. Não, não tenho posição sobre a legalização da prostituição. Por um lado, mantê-la ilegal é negar direitos às prostitutas (e, em menor escala, aos prostitutos também) e não impede que ela siga acontecendo. Por outro lado, ela é estimulada e não combatida nos países em que é legalizada. E queremos que a exploração sexual siga uma constante em nosso mundo?
                Desviando um pouco das Fantines, quero falar da cena final do filme. Fui só eu a socialista maluca que ficou com a impressão muito clara de que o socialismo é elevado ao que toda a humanidade deveria esperar? Digo, Jean Valjean morre e temos a clara impressão de que ele foi para o Céu. E o Céu é uma imensa barricada em frente a um palácio com uma bandeira vermelha tremulando no topo e todo o povo (e, inclusive, soldados que se reconheceram como povo) ao redor dela.
                Com todo respeito ao musical e à “Do you hear the people sing”, eu ainda prefiro uma música mais tradicional...

(já que Les Miserables se passa em Paris, vai aí a versão francesa)

2 comentários:

  1. Muito bom. Mas é L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância*. Abraços!

    http://lieaceito.blogspot.com.br/

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    1. Oi Isadora, eu sei que o nome é grande assim (inclusive no original), mas coloquei curto por pura preguiça rs

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