A garotinha fazia quadros para
ver se a chuva cabia na pintura, pra segurar o sabor das coisas. Talvez a ideia
grudasse na cor, talvez o vento tropeçasse pelo caminho e parasse pra respirar
ali. Talvez todas as criaturas impossíveis fossem lanchar junto dela. Talvez,
então, suas mãos pudessem correr tão soltas quanto havia as pintado pra ser.
Mas apenas seus olhos tinham permissão, secreta, para furar as formas. Mastigando
perfumes e apertando ponteiros, ela se conhecia: Lira, colecionadora de fatos.
Um rio correu entre ela e a senhora comprida do trem.
Planos espumando na xícara,
ardendo o café. O penteado prendia fios brancos e pretos em um coque mal
afrouxado. A ventania carregava a fumaça da boca e corria com os pensamentos
janela afora. Nada de sentar-se e
assoviar uma canção. O tempo de soprar e escrever desenhos azuis não cresceria
nela de novo. Mergulhou o cigarro na xícara cheia. Os planos na verdade
queimavam e morriam na mesinha à sua frente.
Deslizou dali, azul afora, para sua figura magra adolescendo ao sol.
Uma voz aguda escapava do rádio, domando
a tarde. Pequenas rebeliões comiam o ar em volta da moça. Biquíni amarelo e
cabelos deitados na grama, o braço esquerdo afundando na piscina. E o rapaz lhe
agradando com a boca, lá embaixo. Lira enxergava um céu trêmulo de festa em seu
corpo. Apertava o biquíni com a mão encharcada, corando e aprendendo o arrepio.
Com a mesma saliva, ele encontrou sua boca. Desembaraçavam as vergonhas e os
receios, despertos e esclarecidos. Atravessando a tarde, a mesma voz ainda
soava, vívida e agreste, libertando toda muda de flor que não conseguisse
nascer para além de si, todo verbo enterrado na boca.
Afundou no gelado, de volta à infância laranjada do quarto.
Lobos giravam num voo pausado: a
tela mais recente secava debaixo do ventilador. Lira romantizava sobre alguma
angústia, choramingando no caderninho, ainda lambida de tinta, aqui e ali. Triste e sombria, desaguava em cima dos papéis
e pincéis partidos. Os gritos ainda a buscavam, tentando pingar intolerância
por algum caminho ou buraco sagrado. De teimosia, Iluminou mariposas e liberdades
pela parede mesmo, fazendo fogueira pra afastar as bestas. Enquanto o corpo
virava quadro renascentista no espelho, a mente se arreganhava. Mais quente,
mais espaçosa. Estava sentenciado em cada palavra desenhada sua: faria da
ruptura uma sina. Cresceria, engolindo todas essas prisões.
As pernas se esticaram, nuas, no molhado e imprimiram bem no jornal.
Grave e desbotada, a senhora no
trem não lia nem três parágrafos sem que a vista doesse ou a paciência se
fatigasse de qualquer informação avessa às convenções. Já conhecia o suficiente
de tudo, da falta de gentileza do tempo e das ordens do mundo. A ferrovia corria
debaixo dos vagões, a janela deslizava na paisagem, as horas nunca andavam pra
trás. O horror traz certezas. Naquela mente guardada entre roupas, doutrinas e
códigos não caberiam canções.
Coloriu a indecência, pixelizada.
O agudo vibrava de dentro da TV, a
cantora de coxas nuas batucando na madeira, o violão aninhado em seu peito;
sabia ser olhada, sabia ser entendida. Lira a ouvia enquanto amansava os
rugidos de crescimento em seu ventre, era o quarto mês. A barriga anunciou, lá
pelo quinto, a criança clandestina para a irmãzinha Ana, que testava sua
habilidade em girar maçanetas. Os disfarces e seu dom pra invisibilidade não
funcionariam. Do rapaz sobrou pouco mais que um retrato no quintal; ela
carregaria, só, a filha daquela tarde. Olhou pra mãe enojada, a condescendência
do pai doía na culpa. Só de imaginar, ela encolhia. Fraquejou, aprumou as
penas. De lembrete, nem um par de meias debaixo da cama. Dessa vez não tinha
como quebrar a tela, borrar a tintura, a travessura de Lira era vida crescente,
engatinhava e vinha com fome. Fez-se grande pra abrigar Ananda em seu vento.
A figura velha e cansada padeceu, desaparecendo num infinito branco,
seguindo o destino do trem. Parou de ser, tamanha era a ausência de tinta.
A mulher do trem, por sorte ou
por arte, nunca existiu. Só mesmo Lira, mãe passarinha, menina pintada e mulher
n’água a transformar riscos de chuva em represa, papo furado em assovios elétricos
contra a velha cisma humana de estabelecer quadrados.
______________________________________
Fernando Ananias, mato-grossense que faz das palavras brincadeira, tem um quê de Manoel de Barros e Rubem Fonseca, sinestesia e criatividade, personagens memoráveis e histórias surpreendentes. Promessa da literatura brasileira que tenho o orgulho de conhecer. Pedi que escrevesse algo sobre mulheres, uma encomenda para lembrar os velhos tempos de compartilhamento das letras e o resultado foi esse conto tão especial.
Muito bom!
ResponderExcluir