terça-feira, 27 de agosto de 2013

Sendo feminista em terras orientais

“Ser mulher é um trampo”, foi o que um amigo me disse quando eu estava contando algumas das minhas experiências com o choque cultural que estou vivenciando do outro lado do mundo. Há cerca de duas semanas embarquei para um intercâmbio cultural de sete meses. Minha primeira parada é a Índia, onde pretendo passar um período de dois meses. Aqui estou participando de um projeto pela AIESEC e meu grupo de trabalho é composto por mim e mais cinco egípcios, todos muçulmanos.

                Não sei se posso dizer propriamente que sou católica, mas tenho família e educação católicas. Sou dessas que carrega um terço junto por proteção, mas nunca vai à igreja a menos que se trate de casamento, batizado e missa de sétimo dia.  Mas mesmo meu nome denuncia. “Mariana? Com esse nome deve ser católica”, foi o que ouvi de um padre indiano, isso sem dizer nada mais além da minha apresentação. Do ponto de vista cultural posso dizer que nunca antes tinha tido esse contato com culturas não ocidentais*. Por isso, tudo para mim nessa experiência é novo e exótico.

                Como feminista, o choque cultural pode se tornar muito mais intenso e até doloroso. Sempre fui uma defensora árdua do relativismo cultural, mas agora consigo reconhecer que é bem mais simples defender a partir de uma fábula construída à distância do que com a experiência real. Não quero ser mal interpretada aqui, continuo acreditando na necessidade do relativismo, mas com muito mais cuidado para, por puro comodismo, não me valer dele para relevar certas coisas irreleváveis.

                Na verdade tenho vivido um grande dilema. Não acredito em um feminismo importado, branco e colonizador, mas não consigo lidar com naturalidade com as coisas que tenho encontrado aqui. Como esconder minha cara de choque quando uma jovem não muito mais velha que eu me conta, com brilho nos olhos, sobre o casamento arranjado que terá em cerca de seis meses com o marido que o pai escolheu e, questionada sobre o motivo, me diz “preciso casar, ué”? Como reagir quando, ao ser questionada sobre quando pretendia me casar respondi que não sabia se pretendia me casar, ouvi dos meus colegas egípcios que para eles não era assim opcional, era só uma questão de escolher o noivo? Como responder quando escuto que “a função da mulher é casar e cuidar da família e só pode trabalhar fora se conseguir conciliar bem e não conviver com homens demais”? Ou ainda como lidar com o choque de um gentil funcionário da universidade em que estou quando disse que não tinha problema em ir até a minha reunião sozinha, mesmo depois dele argumentar que, mesmo sendo seguro, eu não devia andar sozinha porque sou uma mulher? Ou ao ser questionada se eu daria permissão para um homem me beijar no rosto ou se isso me atrapalharia de conseguir um casamento?

                Mas essa é a parte “leve”. O que mais me doeu foi, quando chegou o assunto da homossexualidade, eu, pronta pra discutir direitos civis como casamento e adoção, fui arrastada para uma conversa em que se traziam argumentos sobre porque a homossexualidade não deveria ser permitida. Quando eu ouvi que gays “espalham doenças e pensamentos anormais pela sociedade e por isso não podem estar soltos por aí” ou até que “a homossexualidade é uma doença mental e deve ser tratada e os doentes retirados do convívio social”. E tudo isso vindo de estudantes universitários, intercambistas, pessoas bem instruídas e com (espera-se) uma mente mais aberta que o padrão da sua sociedade. Quando meus colegas falavam “dos homossexuais” ou “anormais”, minha mente substituía essas palavras por nomes e rostos, por seres humanos completos, com sentimentos e histórias, por pessoas que eu amo. Como ouvir isso calada? Como disfarçar o embrulho que dava no meu estômago? Como, em nome de um relativismo cultural, ignorar tal absurdo? Quando tentei me manifestar contraria fui repreendida por olhares e caras de choque. Ouvi de que “são culturas diferentes”, “não tem gays de onde eu venho” e, ao dizer que meus amigos são gays e são pessoas maravilhosas recebi não apenas olhares, mas ainda manifestações expressas de choque e nojo.

                Como então criar uma desculpa para justificar justamente o que tenho combatido tão arduamente? Inclusive, todo o meu choque não se deve a algum caráter inédito que encontrei no machismo daqui. Se deve principalmente ao fato de enxergar aqui uma caricatura do machismo brasileiro. Quem nunca ouviu que mulher não deve andar sozinha na rua e, se o fizer, “tava pedindo pra ser estuprada”? Que mulher nunca passou pela situação de, ao falar do sucesso profissional ou acadêmico, ouvir a pergunta “tá bom, mas e namorado, não tem?”? Quem nunca ouviu uma insinuação de que mulher que se dedica demais á carreira é frustrada porque não cumpre sua “função natural” de ser esposa e mãe (nessa ordem)? E quem nunca viu a separação entre as mulheres “pra pegar” e “pra namorar”? E felicianos estão aí para provar que homossexuais ainda (sou otimista) não são tratados com respeito e igualdade na sociedade brasileira, ao contrário do que agora pensam meus amigos egípcios.  A sociedade brasileira ainda é extremamente conservadora. Visitar um país como a Índia é se chocar com o contraste entre o exótico e o familiar. Sinto-me deslocada e longe do conhecido, mas é impossível não sentir alguma brasilidade nesse lugar.

Hoje tive a sensação de uma “gota d’água”. Quando fomos iniciar o projeto, no qual devemos preparar apresentações sobre qualquer tema que seja do nosso interesse, o diretor da faculdade, já sabendo o meu tópico, me disse claramente que poderíamos tratar qualquer coisa menos “sexo, álcool e direitos humanos”. Ao lidar com minha revolta ele disse que esse não era um assunto a ser tratado com alunos universitários, que a Índia é uma das maiores democracias do mundo e que, por isso, não se espera que os alunos não deveriam ouvir sobre essas coisas. Diante da minha insistência ele disse que o máximo que eu conseguiria seria desinteresse e uma turma incontrolável. Quando entramos na sala de aula e fomos instruídos a começar nossas apresentações eu discursei por uns quinze minutos sobre noções básicas dos direitos humanos e sua evolução, sobre como suas violações são mais cotidianas do que pensamos e ganhei em retribuição olhares interessados e caras de fascínio. Talvez um pouco da revolta do diretor, anulada diante à clara empolgação da turma. Uma das alunas, de quem me tornei amiga, me confidenciou mais tarde que boa parte dos alunos ficou pesquisando no google sobre o tema, claramente interessados.

Não posso entregar a elxs meu feminismo, mas posso fazer alguma coisa. Esse episódio sem dúvidas me deixou incomodada e fez toda essa problemática pipocar de novo na minha cabeça. Não é fácil disseminar o feminismo dentre as pessoas com quem convivi por toda a minha vida, como então fazer isso em uma cultura tão diversa? Como respeitar a diversidade cultural e religiosa das pessoas com quem convivo, ao mesmo tempo em que tanta coisa me revolta? Mas ainda, como simplesmente ignorar o que está diante dos meus olhos, numa sociedade em que as mulheres são subvalorizadas e tratadas como propriedade, gays são invisibilizados e a simples menção de se discutir “direitos humanos e direitos das mulheres” com estudantes de vinte-e-poucos anos causa arrepios?

Sigo sendo uma feminista ocidental do outro lado do mundo. Não é uma tarefa fácil, mas ser mulher nunca foi. Afinal, ser feminista também “é um trampo”.



*Por ocidental defino aqui tanto as dimensões geográficas (do lado 'esquerdo' de Greenwich) e a ideia de uma cultura de origem cristã.



Um comentário:

  1. Gostei muito do texto. Achei sinceras demais as suas impressões, gostei de como você as colocou, enfim, achei ótimo e bem escrito.

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