domingo, 22 de abril de 2012

A mulher que não gostava de poesia

          Era um domingo. Dia em que as construções do centro da cidade ganhavam destaque, sem a fumaça do trânsito, o burburinho dos passos dos pedestres e o barulho de motores de carro de dias chamados úteis. Mas nem todo domingo era inútil assim. 
          Ana saía do Belas Artes. Ainda atordoada com a quantidade de cores e com a potência de texturas daquele local, a pequena mulher ia em direção à estação de metrô. À sua volta, prédios, calçada, ruas, todos aparentemente solitários, abraçados apenas a seu cinza de todos os dias.
         Ela gostava de estar sozinha. A sensação de não ter ninguém te observando ou interagindo com seus pensamentos era não só uma forma de autoconhecimento, mas um descanso da vida de relações. Relações podiam ser tão chatas! As pequenas obrigações, como desejar bom dia, sorrir ao ver algum conhecido, manter contato com os amigos mais próximos, responder à mensagem bonitinha do namorado à altura... Todas elas - por mais que as exercesse muito bem - todas elas cansavam. Sentia prazer confortável em almoçar sozinha, caminhar sem ninguém ao lado e ter apenas a sua companhia numa tarde em seu apartamento.
         Ainda assim, era estranho ser a única daquele lugar. Sua mania de tentar bisbilhotar os detalhes aparentes das pessoas a sua volta e formar minibiografias de suas vidas acabava se modificando. Demorou a perceber que a cinelândia também tinha seus personagens permanentes, inclusive aos domingos. Imóveis sob jornais ou embaixo de mantas, eles pareciam tão solidificados quanto os grandes prédios do centro. E eram. Eles sempre estiveram ali. As curtas histórias que formulava, então, passavam a se tornar extensas e mergulhadas em certa criticidade não comuns a suas análises de rua.
         Um deles dormia profundamente, cobrindo-se quase por completo - deixando aparentes apenas seus pés descalços marcados pela sujeira das ruas - com uma manta verde quase no mesmo tom de sua mochila de pano: mas com algumas manchas que não se identificava se eram de sangue ou de qualquer outro excremento humano urbanóide. Andando em ritmo lento e com expressão corporal extremamente densa, Ana parecia se arrastar como uma cobra ferida prestes a morrer. Aquele era seu habitat fundamental e, no entanto, ela parecia alheia àquele domingo na cinelândia. Alheia, e ao mesmo tempo tão tocada por ele. Alheia, e apesar disso, transbordando impressões sensíveis àquilo. Alheia e cônjuge daqueles moradores de rua.
          A mulher muito branca de cabelos curtos que caminhava no centro da cidade parecia um pesquisador biológico em um bioma desconhecido: atenta a todos os sons, cheiros e ícones daquele deserto urbano. Sua sensibilidade era tanta que num de seus pés, enquanto alternava os passos, notou por um momento embaixo da sapatilha uma moeda. Ao movimentar novamente sua perna, viu que não estava delirando - e se surpreendeu com sua astúcia.
         De longe, viu um banco vazio. Achou estranho não estar ocupado por um daqueles personagens permanentes da cinelândia: talvez fosse porque nele batia sol, e fazia muito calor em dezembro. Continuou andando, sabia que para chegar à estação aquele era o caminho mais curto. Observou mais atentamente e viu que havia um objeto azul sob o banco. Era um livro. "Era um livro?!" Só podia ser um livro. Olhou em volta na esperança de achar quem o havia esquecido ali, solitário, fechado, camuflado - mesmo sendo uma das únicas coisas com cor daquele metro quadrado. Nada encontrou. Hesitou, mas assim que chegou no banco pegou o livro para ver do que se tratava. Era poesia! Ana nunca tinha gostado de poesia. Já estava o colocando novamente onde o encontrou, quando teve vontade de abrí-lo. Permaneceu alguns milésimos de segundo o segurando a poucos centímetros do banco, fechado, quando finalmente separou com os dedos a capa da primeira página. Nela estava uma dedicatória, de caneta também azul: "Com amor", leu em voz alta. "Com amor"... tentava entender a assinatura abaixo da inscrição. "Com amor"... "Quem?!" A letra fina, rápida, larga, lembrava a caligrafia de alguém próximo, não sabia quem - para Ana essa sensação era constante. Talvez lembrasse em algum outro domingo qualquer. Ficou alguns segundos tentando decodificar aquela assinatura que mais parecia um desenho abstrato. Era estética. Linhas curvas, retas, atravessando umas às outras, formando uma figura com harmonia visual. Seu rosto redondo aos poucos foi tomado por uma expressão de dúvida típica de quem tinha traços finos como os seus. As sobrancelhas em alturas diferentes, os lábios finos tendendo para um lado, o nariz levemente tensionado. Pouco depois, gradualmente via-se seu rosto mudar de configuração. O nariz aos poucos relaxava, os lábios se entreabriram, as sobrancelhas se alinharam e foram postas de modo curvilíneo. Ana lembrou-se de seu avô. Certa vez lhe disse que um dia havia de gostar de poesia, e ficou com aquilo na cabeça por alguns dias, esquecendo em seguida. 
         Descendo as escadas rolantes do metrô, ainda em êxtase, Ana recebeu uma mensagem no celular perguntando como tinha sido seu dia. Com medo de não conseguir dizer o que realmente sentia naquele momento, simplesmente desligou o celular e seguiu caminho. De um momento para outro aquela pequena mulher de cabelo bagunçado amava aquele livro e sabia que, mesmo que nunca fosse lido atentamente, permaneceria em sua mochila de pano onde quer que fosse. 

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