segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A Propaganda como Fábrica da Mulher Brasileira


Para Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa feminista, “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. De acordo com a sociologia, esse tipo de identidade é construída gradualmente e tem influências (sociais, familiares, ideológicas, culturais e etc) que são moldadas de acordo com o contexto de época e de lugar em que se insere. O modo de ser, agir e pensar da mulher é criado, portanto, de diferentes formas em cada geração das populações. E a desigualdade de gênero é uma dessas criações sociais históricas. 

Vivemos na sociedade brasileira do início do século XXI, com uma cultura abundante e múltipla, típica do quinto país do mundo em área de território. Em menos de 500 anos de formação, tivemos diversas tipificações e identidades de brasileiros, que vão desde caracterizações econômicas até regionais, de costumes e de gênero. Características formadas, estrategicamente ou não, por setores da mídia e culturais, como imprensa, arte e, principalmente, pela propaganda. E como se dá essa formação? Estudamos desde a entrada na educação formal a História da Humanidade através dos acontecimentos que envolveram ação direta do homem. As relações sociais e seus períodos históricos, entretanto, são tratadas com menor importância. Será que esse tratamento secundário é adequado para a formação de uma sociedade mais esclarecida?
Propaganda dos anos 50 - "Mantenha ela em seu lugar"

Propaganda oficial do DIP
Nas décadas de 30 e 40, por exemplo, a propaganda teve grande importância política e social. No Brasil, foi principalmente por esse meio (além dos discursos e medidas estratégicas) que Getúlio Vargas conseguiu popularidade entre as classes mais baixas e levou seu programa econômico nacionalista para frente. Diariamente, anúncios ressaltavam o governo e mostravam que suas medidas tinham favorecido o trabalhador. O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) teve participação intensa na formação da imagem de Vargas como “grande estadista” e “pai dos pobres”. Na Alemanha nazista, o ministro da propaganda Goebels também trabalhou arduamente na formação da ideologia da sociedade alemã de sua época. Despertando a herança de segregação e preconceito alemão em relação aos judeus, promovendo megadiscursos à nação enaltecendo seu exército, criando um sentimento de vingança à derrota na Primeira Guerra e promovendo a imagem de Hitler como salvador da raça ariana; um dos maiores propagandistas do mundo conseguiu conquistar uma nação inteira em prol de um governo totalitário. É exagero afirmar que esse poder persuasivo modificou a concepção de mundo das pessoas que viveram naquele tempo e que o papel da mulher na sociedade tem ligação direta com isso?

As diversas figurações do mundo contemporâneo formam a história da alternância das identidades dos indivíduos no decorrer das décadas. Segundo Max Weber (1864-1920), “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo tece” e as ciências sociais servem como uma forma de interpretá-las, à procura dos significados. A imprensa e a propaganda servem, de certa forma, como fixadores dessas teias, por serem meios públicos de comunicação em massa e atingirem a todas as classes da sociedade. São elas as principais formadoras da imagem e do papel social de cada indivíduo no meio em que vive. A mulher, então, é propagada, em cada época, com funções e interpretações diferentes. Sua auto-imagem, ou seja, como projeta sua identidade pessoal, é composta não só pelas variáveis pessoais (de família e personalidade), mas pelos folhetos, anúncios e vinculações de massa. A figura feminina, portanto, é construída com a ajuda dos meios de comunicação. Considerando a propaganda também como uma produção artística, podemos dizer que, apesar de ficcional e subjetiva, apresenta em si coerência com o cenário de sua criação e contém significados, que podem ser desmistificados através de análises de imagem. Assim como um artista (mesmo que subjetivamente) deposita alguns elementos da sua realidade na obra, um propagandista retrata anseios reais de seu tempo nos anúncios de massa.  Eles têm uma intenção estética e – o mais evidente – uma funcionalidade. Baseiam-se no pacto entre o autor e seu público, cuja compreensão depende do contexto no qual aquele material de divulgação se insere. Paralelamente à história da propaganda brasileira, há a história de sua sociedade e da política. E essas são três áreas que se entrelaçam nitidamente no estudo da imagem da mulher brasileira.

"O chefe faz tudo, menos cozinhar - é pra isso que as esposas servem!"
O desenvolvimento do país nos chamados “Anos Dourados” teve papel importante na construção do papel da mulher brasileira até os dias de hoje. Com um governo baseado na abertura do mercado para o capital estrangeiro, Juscelino Kubitschek possibilitou a entrada de produtos importados nas famílias de classe média. Junto com eles, vieram suas propagandas: sempre retratando a mulher como dona-de-casa, submissa ao marido e feliz com os afazeres de limpeza e organização domiciliar. Imediatamente, criou-se a associação de que a felicidade seria possível a partir desse novo modelo de vida – o do consumo. A estrutura familiar preferida era aquela em que se tinha todos os produtos anunciados na televisão e inclusive aquele padrão de mulher perfeita. Era o chamado american way of life, importado dos EUA com os aparelhos como aspirador de pó, geladeira e a televisão em cores. Esse tipo de vinculação era pública e influenciava, principalmente, a identidade das mulheres dos setores sociais médios, que passaram a querer comprar aqueles produtos e viver como aquelas mulheres-modelo dos anúncios de televisão. Acreditaram na “compra da felicidade”. Os homens daquela época, por sua vez, também cobravam aquele comportamento de suas esposas, já que se não o fizessem não estariam exercendo seu papel na hierarquia familiar. A sociedade como um todo, sem perceber, estipulava essa diferenciação de papéis e, consequentemente, discriminava quem não seguia a regra.

Hoje em dia circulam nos meios de comunicação anúncios com a mesma linha de criação. Ainda predominam propagandas em que a mulher divulga o produto de limpeza e eletrodomésticos, enquanto o pai de família aparece nas de automóveis e trabalha fora, mas dessa vez há também a formação de novas imagens femininas. 

Além da herança do modelo de “família perfeita” presente em nosso país desde a metade do século passado, houve a formação do papel de consumidora e de trabalhadora na sociedade brasileira. Agora além de dona-de-casa a mulher tem outras funções a desempenhar, e isso fica claro quando vemos o aparecimento de sua representação em propagandas de negócios e de bancos - dividindo espaço com o homem - e quando surge também como consumidora - principalmente a partir dos cosméticos, demonstrando como a mulher deve ser linda e seguir os padrões de beleza para ser aceita. Constituem uma cultura de desigualdade e estereotipização da mulher também as propagandas de cerveja. Nelas, há sempre uma ou mais mulheres “enfeitando a tela” em sua forma mais sensual, enquanto os homens bebem e as tratam como objetos de desejo. A erotização da mulher retrata um modelo de estética e comportamento e, também, o modo que o homem deve se portar para conseguir a “mulher-objeto perfeita”. Que tipo de relação entre os gêneros essa veiculação demonstra? Nas últimas décadas, devido ao avanço tecnológico e à popularização da televisão, são muito presentes na cultura popular as propagandas televisivas de sujeição da mulher. E apesar de termos avançado muito em relação aos direitos das mulheres e percebermos uma promoção cada vez mais latente da igualdade de gênero, a imagem da mulher ainda se limita a padrões que se impregnam na cultura e no dia a dia dos brasileiros. É durante os intervalos de programas de canal aberto que concluímos de onde pode vir a maior influência na formação e consolidação dessa discriminação. E como poderíamos reverter essa situação?

Documentário de Eduardo Colgan sobre a mulher nas propagandas de cerveja

Sabendo do importante poder dos meios de comunicação na construção de valores da sociedade, utilizar-se persuasivamente deles não seria uma tarefa impensada. Usando o mesmo modo de influência - mas com o objetivo contrário - estaríamos resolvendo o problema com mais eficácia, já que além de promover a igualdade de gênero em massa, acabaríamos com a reação de ascensão dos estereótipos da mulher através da “inversão” de papéis na televisão brasileira. Além de um maior investimento em propagandas de valorização da mulher e de promoção da igualdade de gênero, a exigência do governo quanto a uma publicidade sem imagens que menosprezem a mulher ou promovam, direta ou indiretamente, a desigualdade de gênero, faria com que os telespectadores tivessem menos influência por esse meio na formação de sua identidade. Com essa nova legislação, chegaria à casa dos brasileiros a informação do que é esse tipo de desigualdade, como ele acontece e como combatê-lo no dia a dia. E essa problematização faria com que se abrisse um diálogo entre as famílias e na rotina do telespectador, fazendo com que a discriminação diminuísse.  

O esclarecimento do poder da propaganda na sociedade aos brasileiros de todas as classes sociais é ponto-chave para o entendimento geral do resultado das relações do mundo contemporâneo.  Ela tem um papel importantíssimo na formação dos hábitos e da cultura de nosso país, e isso tem influência gigantesca na nossa população. A imagem da mulher, seus papéis sociais, modo de vida e estereotipizações são fabricados principalmente pelos meios de comunicação em massa, assim como uma série de hábitos sociais presentes de forma crucial em nosso cotidiano. É preciso admitir o poder dessa fábrica de universos que é o a propaganda e passar a usá-la em prol da igualdade de gênero. Fabricar uma mulher valorizada, sem modelos estéticos, com as mesmas oportunidades e direitos do homem, e, principalmente, liberta de padrões controladores.

"Quer dizer que uma mulher pode abrir isso?"

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