Certa
vez estava andando com minha mãe e ela me surpreendeu com uma
pergunta: “filha, como eu faço para ser feminista?”. Tive
vontade de chorar, mas sabia que ali morava o segredo para uma
relação maravilhosa com minha mãe. Ela não sabia, mas ela foi a
primeira feminista que conheci.
Meu
primeiro texto aqui no blog tinha a data de hoje para sair: dia das
mães. Sem me ligar exatamente na data, tinha decidido que escreveria
sobre sororidade (pacto de irmandade entres as mulheres, sobre o qual
também quero escrever mais detalhadamente em outro texto, veja aqui e aqui) e como
tinha sido, para mim, a experiência de ter contato solidário com
outras mulheres, ainda que com experiências diferentes das minhas,
de enxergar nelas pessoas como eu, não pesar sobre elas meus
julgamentos moldados por uma sociedade machista que me ensinou a
oprimir e a aceitar ser oprimida. Aí vi um desses comerciais de
televisão falando sobre o dia das mães, cujo teor da abordagem não
vou agora discorrer, e então pensei com carinho em minha mãe e em
como foi ali, com ela, que aprendi e aprendo sobre sororidade.
Aí
me veio outra coisa: certa vez me perguntaram de qual corrente do
feminismo eu era. Juro que não sabia que isso existia porque, para
mim, o feminismo era algo simples de explicar – nós, mulheres,
tomamos consciência da opressão que nos rodeia em todas as áreas
da vida, nos obrigando a seguir um modelo de vida que conceberam sem
nosso consentimento e, a partir dessa tomada (dolorosa sim) de
consciência, conseguimos encontrar uma liberdade muito boa (e também
difícil) de sermos exatamente quem quisermos ser. E isso servia para
as mulheres brancas, negras, amarelas, gordas, magras, trans ou cis,
etc etc etc) – e eu nem sabia direito que, para ser feminista, eu
tinha que ter lido livros teóricos (e não tiro aqui o mérito das
escritoras geniais que, de fato, dão uma boa base teórica para a
discussão) ou me encontrar em alguma corrente. Senti minha
“carteirinha cassada”. E me lembrei da pergunta de minha mãe.
“Não
se nasce mulher, torna-se”. Não sei se entendi. Para mim
significava justamente o momento em que tomávamos consciência de
nosso corpo e de que ele é nosso e de que deve, por ser nosso,
corresponder aos nossos desejos (porque foi ali, nessa tomada de
consciência, que tornei-me). Mas também penso – e agora volto ao
tema central – nos caminhos de tornar-se mulher. Minha mãe é mãe
solteira. Embora minha criação tenha envolvido diretamente meu pai
também, foi com minha mãe que moraram todos os desafios. E os
desafios começavam ser classe baixa, ter 20 anos, não ser casada e
ter dois filhos. Ser apontada pelas pessoas, ser julgada. Isso
aconteceu há 20 anos atrás, mas acontece ainda hoje. Vejo minhas
amigas, jovens mães, sendo julgadas diariamente por ter tido umx
filhx como se somente a ela pertencesse a responsabilidade. E, dado o
peso dessa responsabilidade, não é dado a nós sequer o direito de
decidir manter ou não uma gravidez. Vivemos num país em que o tema
do aborto, nos dias atuais, é tratado com o mesmo descaso que era
dado na época em que minha mãe estava grávida e antes disso…
muito antes disso. O que parece, observando o caminhar de discussões
sobre o aborto, é que nosso congresso, juntamente à mentalidade de
boa parte da população, infelizmente, estacionou numa época muito
distante da nossa. Somos anacrônicos. E mulheres seguem morrendo
todos os dias.
Minha mãe, como outras mães, não pôde decidir se manteria ou não
uma gravidez, caso contrário seu risco de morte seria grande – e
os julgamentos ainda maiores. E quantas de nós já não morremos em
iguais condições. Mantendo a gravidez, sobraria agora o resto das
disputas diárias da vida: dividir-se em várias jornadas, trabalhar,
ser mãe, ser dona de casa e quase não encontrar tempo para
desenvolver seus prazeres e desejos. E quantas não são, hoje,
exatamente um reflexo do que minha mãe foi. Não se dividem em
funções que esmagam, em responsabilidades que não são partilhadas
com os homens porque, dizem eles, não lhes cabem nossos afazeres
domésticos. Minha mãe, embora excelente, não foi glorificada por
nada disso. Tenho certeza, quase que absoluta, se meu pai tivesse
desempenhado esse mesmo papel, mas com o auxílio secundário de
minha mãe, ele seria visto como um verdadeiro exemplo a ser seguido,
a sociedade o aplaudiria, não seria tão difícil quanto foi.
Enfrentamos as mesmas questões há muitos anos. Tenho medo de achar
que nossa caminhada, tão árdua e difícil na construção da
emancipação feminina, ainda esteja longe do fim.
Mas tomo ar: lembro-me da pergunta que minha mãe me fez. O interesse dela no feminismo me fez ver que a minha militância estava longe de ser completa se não conseguia ajudar minha mãe a se empoderar, a figura feminina mais forte que tenho em minha vida, se minha mãe ainda se sentia oprimida, sentia que a calavam nos espaços, que passavam por cima da autoridade de sua fala como mulher. O feminismo, amigas, está longe das correntes. O feminismo transpassa as teorias. O feminismo está na vivência e eu acredito que o contato com ele é muito mais profundo quando compreendemos nossas situações diárias porque só tem poder para falar de opressão quem passou por ela. Vendo toda a história de minha mãe e de outras mães solteiras e de tantas outras mães e de tantas outras mulheres que não quiseram ser mães e outras tantas que morreram nas clínicas de aborto e tantas que não querem ter filhos e de todas nós vejo que o feminismo passa pelo exercício real da sororidade, de conseguir ter sensibilidade para compreender que passamos ou passaremos todas por caminhos opressores e machistas que tentarão nos despersonificar e que, só fortalecidas e em conjunto, conseguiremos vencer essa sociedade patriarcal que tanto tenta nos desunir para enfraquecer. É claro que existem recortes absolutamente importantes: como um feminismo negro, um feminismo trans, um feminismo que passa por um recorte de classes, e sobre os quais cada mulher desenvolve sua representatividade de acordo com aquele que ela mesma se norteia por suas lutas diárias.
Mas o objetivo desse texto, que talvez eu tenha perdido no meio dele – pois são muitas discussões sobre o tema e uma puxa a outra e são inesgotáveis – é lembrar realmente de fortalecermos as mulheres que encontramos numa rede de estímulo que começa ali, bem do ladinho, bem na sua mãe. Nem que você seja sua própria mãe.