“Ser mulher é
um trampo”, foi o que um amigo me disse quando eu estava contando algumas das
minhas experiências com o choque cultural que estou vivenciando do outro lado
do mundo. Há cerca de duas semanas embarquei para um intercâmbio cultural de
sete meses. Minha primeira parada é a Índia, onde pretendo passar um período de
dois meses. Aqui estou participando de um projeto pela AIESEC e meu grupo de
trabalho é composto por mim e mais cinco egípcios, todos muçulmanos.
Não
sei se posso dizer propriamente que sou católica, mas tenho família e educação
católicas. Sou dessas que carrega um terço junto por proteção, mas nunca vai à
igreja a menos que se trate de casamento, batizado e missa de sétimo dia. Mas mesmo meu nome denuncia. “Mariana? Com esse
nome deve ser católica”, foi o que ouvi de um padre indiano, isso sem dizer
nada mais além da minha apresentação. Do ponto de vista cultural posso dizer
que nunca antes tinha tido esse contato com culturas não ocidentais*. Por
isso, tudo para mim nessa experiência é novo e exótico.
Como
feminista, o choque cultural pode se tornar muito mais intenso e até doloroso.
Sempre fui uma defensora árdua do relativismo cultural, mas agora consigo
reconhecer que é bem mais simples defender a partir de uma fábula construída à
distância do que com a experiência real. Não quero ser mal interpretada aqui,
continuo acreditando na necessidade do relativismo, mas com muito mais cuidado
para, por puro comodismo, não me valer dele para relevar certas coisas
irreleváveis.
Na
verdade tenho vivido um grande dilema. Não acredito em um feminismo importado,
branco e colonizador, mas não consigo lidar com naturalidade com as coisas que
tenho encontrado aqui. Como esconder minha cara de choque quando uma jovem não
muito mais velha que eu me conta, com brilho nos olhos, sobre o casamento
arranjado que terá em cerca de seis meses com o marido que o pai escolheu e,
questionada sobre o motivo, me diz “preciso casar, ué”? Como reagir quando, ao
ser questionada sobre quando pretendia
me casar respondi que não sabia se
pretendia me casar, ouvi dos meus colegas egípcios que para eles não era assim
opcional, era só uma questão de escolher o noivo? Como responder quando escuto
que “a função da mulher é casar e cuidar da família e só pode trabalhar fora se
conseguir conciliar bem e não conviver com homens demais”? Ou ainda como lidar
com o choque de um gentil funcionário da universidade em que estou quando disse
que não tinha problema em ir até a minha reunião sozinha, mesmo depois dele
argumentar que, mesmo sendo seguro, eu não devia andar sozinha porque sou uma
mulher? Ou ao ser questionada se eu daria permissão para um homem me beijar no
rosto ou se isso me atrapalharia de conseguir um casamento?
Mas
essa é a parte “leve”. O que mais me doeu foi, quando chegou o assunto da
homossexualidade, eu, pronta pra discutir direitos civis como casamento e
adoção, fui arrastada para uma conversa em que se traziam argumentos sobre
porque a homossexualidade não deveria ser permitida.
Quando eu ouvi que gays “espalham doenças e pensamentos anormais pela sociedade
e por isso não podem estar soltos por aí” ou até que “a homossexualidade é uma
doença mental e deve ser tratada e os doentes retirados do convívio social”. E
tudo isso vindo de estudantes universitários, intercambistas, pessoas bem
instruídas e com (espera-se) uma mente mais aberta que o padrão da sua
sociedade. Quando meus colegas falavam “dos homossexuais” ou “anormais”, minha
mente substituía essas palavras por nomes e rostos, por seres humanos
completos, com sentimentos e histórias, por pessoas que eu amo. Como ouvir isso
calada? Como disfarçar o embrulho que dava no meu estômago? Como, em nome de um
relativismo cultural, ignorar tal absurdo? Quando tentei me manifestar
contraria fui repreendida por olhares e caras de choque. Ouvi de que “são
culturas diferentes”, “não tem gays de onde eu venho” e, ao dizer que meus
amigos são gays e são pessoas maravilhosas recebi não apenas olhares, mas ainda
manifestações expressas de choque e nojo.
Como
então criar uma desculpa para justificar justamente o que tenho combatido tão arduamente?
Inclusive, todo o meu choque não se deve a algum caráter inédito que encontrei
no machismo daqui. Se deve principalmente ao fato de enxergar aqui uma
caricatura do machismo brasileiro. Quem nunca ouviu que mulher não deve andar
sozinha na rua e, se o fizer, “tava pedindo pra ser estuprada”? Que mulher
nunca passou pela situação de, ao falar do sucesso profissional ou acadêmico,
ouvir a pergunta “tá bom, mas e namorado, não tem?”? Quem nunca ouviu uma
insinuação de que mulher que se dedica demais á carreira é frustrada porque não
cumpre sua “função natural” de ser esposa e mãe (nessa ordem)? E quem nunca viu
a separação entre as mulheres “pra pegar” e “pra namorar”? E felicianos estão
aí para provar que homossexuais ainda (sou otimista) não são tratados com
respeito e igualdade na sociedade brasileira, ao contrário do que agora pensam
meus amigos egípcios. A sociedade
brasileira ainda é extremamente conservadora. Visitar um país como a Índia é se
chocar com o contraste entre o exótico e o familiar. Sinto-me deslocada e longe
do conhecido, mas é impossível não sentir alguma brasilidade nesse lugar.
Hoje tive a
sensação de uma “gota d’água”. Quando fomos iniciar o projeto, no qual devemos
preparar apresentações sobre qualquer tema que seja do nosso interesse, o
diretor da faculdade, já sabendo o meu tópico, me disse claramente que poderíamos
tratar qualquer coisa menos “sexo, álcool e direitos humanos”. Ao lidar com
minha revolta ele disse que esse não era um assunto a ser tratado com alunos
universitários, que a Índia é uma das maiores democracias do mundo e que, por
isso, não se espera que os alunos não deveriam ouvir sobre essas coisas. Diante
da minha insistência ele disse que o máximo que eu conseguiria seria
desinteresse e uma turma incontrolável. Quando entramos na sala de aula e fomos
instruídos a começar nossas apresentações eu discursei por uns quinze minutos
sobre noções básicas dos direitos humanos e sua evolução, sobre como suas
violações são mais cotidianas do que pensamos e ganhei em retribuição olhares
interessados e caras de fascínio. Talvez um pouco da revolta do diretor,
anulada diante à clara empolgação da turma. Uma das alunas, de quem me tornei
amiga, me confidenciou mais tarde que boa parte dos alunos ficou pesquisando no
google sobre o tema, claramente interessados.
Não posso
entregar a elxs meu feminismo, mas posso fazer alguma coisa. Esse episódio sem
dúvidas me deixou incomodada e fez toda essa problemática pipocar de novo na
minha cabeça. Não é fácil disseminar o feminismo dentre as pessoas com quem
convivi por toda a minha vida, como então fazer isso em uma cultura tão
diversa? Como respeitar a diversidade cultural e religiosa das pessoas com quem
convivo, ao mesmo tempo em que tanta coisa me revolta? Mas ainda, como
simplesmente ignorar o que está diante dos meus olhos, numa sociedade em que as
mulheres são subvalorizadas e tratadas como propriedade, gays são invisibilizados
e a simples menção de se discutir “direitos humanos e direitos das mulheres”
com estudantes de vinte-e-poucos anos causa arrepios?
Sigo sendo uma
feminista ocidental do outro lado do mundo. Não é uma tarefa fácil, mas ser
mulher nunca foi. Afinal, ser feminista também “é um trampo”.
*Por ocidental defino aqui tanto as dimensões geográficas (do lado 'esquerdo' de Greenwich) e a ideia de uma cultura de origem cristã.
Gostei muito do texto. Achei sinceras demais as suas impressões, gostei de como você as colocou, enfim, achei ótimo e bem escrito.
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