quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Economia, um nome masculino.


Competição e concorrência, crescimento do PIB: Estes dois dogmas da economia baseiam-se nos “valores tradicionalmente masculinos” e tornam invisíveis as “atividades tradicionalmente femininas”. Uma análise do economista Jean Gardrey, no simpósio sobre “O gênero da economia” realizado no dia 29 de Março pela Les nouvelles NEWS.
A economia refere-se tanto às práticas quanto a  um campo de conhecimento ou de crenças (uma disciplina). E é a dimensão sexista desta última que nos interessa aqui.
Mas, para falar disso, devemos começar a partir de uma característica dessa disciplina: o domínio atual da economia ortodoxa, cujo coração é composto de conceitos apresentados como universais (o consumidor, o produtor, os fornecedores, a demanda, a utilidade...) ignorando e tornando invisíveis as relações sociais, inclusive as relações de gênero.
Decifrar a questão de gênero da economia (dominante) é dar visibilidade a essa falsa universalidade de seus pressupostos abstratos. Fazendo isso, começamos com duas perguntas:

1 - Quem produz e difunde esses pressupostos?
2 - Em que sentido seus dogmas são sexistas?
"Iguais?" Como pode a economia julgar invisível metade da população mundial?
Foto: World Bank Photo Collection
Paridade em 70 anos?
Quem – homem ou mulher – produz e expõe as “verdades” da economia? Devemos diferenciar a Academia (universidade e pesquisa), com suas relações internas de poder, da dimensão midiática, onde estão os economistas mais “visíveis”.
Na França, entre os professore universitários de economia, havia 10% de mulheres na segunda metade da década de 1990(1). Em 2010, esse percentual chegou a 16%. A esse ritmo (0,5% ao ano) a paridade entre professores e professoras ocorrerá... Mas, daqui a 70 anos.
Quanto aos economistas de renome, as estrelas da economia, encontra-se na França um pequeno grupo de 15 a 20 pessoas, todos do sexo masculino. Sua função oficial (explicar a economia) é menos importante que sua função real: Fazer acreditar que a economia está sob controle, que eles detêm as chaves e que certos princípios ou dogmas são indiscutíveis.
Dois dogmas: Concorrência e crescimento.
Qual é o conteúdo das mensagens da economia dominante e o que tem a ver com a questão de gênero?
Dois princípios fundamentais se desfazem no ar. O primeiro consiste em introduzir a concorrência e a “livre” circulação mundial de bens e capitais como base do interesse geral, como algo de que todos dependem. Esta é a mensagem do liberalismo econômico. Sabemos que isso gerou, de fato, uma concentração sem precedentes do poder econômico e financeiro.
O segundo é a prioridade ao crescimento, o do PIB (2). Tudo depende dele: O progresso social, a erradicação do desemprego e da pobreza, ou, o fim da crise ecológica através da economia verde.
Economistas heterodoxos criticam ferozmente a primeira dessas hipóteses, e alguns raros, contestam igualmente a segunda. Mas, curiosamente, quase nunca enfatizam o óbvio: Estes dois dogmas expressam, no registro da economia, “valores tradicionalmente masculinos”. Esse termo não se refere, evidentemente, a características naturais. Não pretendemos dizer que todos os homens defendem esses valores tradicionais, nem que todas as mulheres se opõem a eles. Mas, séculos de desigualdade e de dominação masculina produziram efeitos ainda hoje impregnados nas representações de papéis masculinos e femininos, inclusive no campo da economia.
O gênero do liberalismo econômico
Competição e concorrência de todos contra todos, evolução darwiniana do sistema, eliminação ou absorção de concorrentes, guerra econômica, por vezes ligada a conflitos militares, a troca desigual: Tudo é relacionado - juntamente ao liberalismo econômico e apoio financeiro das teorias econômicas dominantes - aos valores historicamente associados à dominação masculina tradicional, em sua versão mais bélica. Estes não são valores de cooperação ou comércio justo, nem da lógica do cuidado, ridicularizada pelos “grandes homens”, em 2010.
A transição do capitalismo “fordista” dos Trinta Anos Gloriosos ao capitalismo financeiro, ou neoliberal, não mudou nada. Homens retiveram tanto o controle quase-que-exclusivo sobre o poder financeiro (os 27 governadores dos bancos centrais dos 27 países da União Europeia são todos homens) que na análise econômica das finanças, nas rodas de especialistas sobre a crise, não encontramos nada além de homens. Em contrapartida, no que tange a moedas complementares e economia solidária, a paridade (ou a presença de uma maioria feminina) é frequente...
Gênero e crescimento do PIB
O segundo grande dogma da economia dominante, é ele que faz do crescimento do PIB o começo e fim do progresso, não sendo menos masculino que o primeiro. Gostaria de citar um post do meu blog no qual expresso meus argumentos: http://alternatives-economiques.fr/blogs/gadrey/2009/02/19/le-sexe-du-pib/. Resumi dois índices desta masculinidade original cuja função é produzir a invisibilidade da maioria das atividades femininas e a supervalorização das dos homens.
1-  Em livro de referência Les comptes de La puissance, publicado em 1980, François Fourquet mostra que a construção das contas da nação se faz dentro da lógica do poder bélico e, após a guerra, da reconstrução industrial. É por isso, também, que demorou quase 30 anos para que na França, em 1976, os serviços não-mercantis, ligados a reprodução da sociedade (educação, saúde, proteção social... todas as esferas maiores da atividade feminina) fossem considerados como dignos de inclusão no PIB.
Mas, o poder, a guerra, o desempenho, técnica e indústria são, de fato, dominados por homens. Com efeito, há representações de gênero de riqueza e progresso. O Antropólogo Françoise Héritier (em seu livro: Masculin/Féminin II, Odile Jacob, 2002) oferece um exemplo espetacular: “Recentemente, uma pesquisa de opinião pública foi realizada por sociólogos para saber quais foram os principais eventos do século XX. Homens responderam majoritariamente a corrida espacial. E, 90% das mulheres colocam em primeiro o direito à contracepção”. Por um lado o poder de guerra e dominação técnica sobre a natureza. Por outro, um aspecto central da emancipação humana.
2- A maioria das pessoas não sabe, mas, a produção doméstica de bens ou “auto-produção” é integrada ao PIB através de uma equivalência monetária, já a produção doméstica de serviços não. Como explicar que quando o “senhor” faz sua hortinha ou constrói a garagem, e que quando a “senhora” limpa, cozinha e cuida das crianças, apenas este primeiro contribui para a riqueza nacional oficial?  Vários argumentos envergonhados surgem. Nem podem resistir a críticas. A única explicação está nas representações sexistas da economia e o que realmente importa nela (para os homens que a dirigem). Não é nada menos que uma organização socialmente construída de desvalorização e ocultação do trabalho das mulheres.
Dada as limitações do PIB e do crescimento como indicadores de progresso, aquelas já mencionadas e outras, vê-se a necessidade de um movimento internacional em prol dos indicadores alternativos. Muitos destes envolvem critérios de igualdade entre homens e mulheres.
Questionar-se sobre o gênero da economia é uma maneira primária, dentre outras, de por a prova o “economicismo”, a pretensão de certa ciência econômica de impor conceitos, leis, e visões de riqueza que mascaram as práticas e os valores (cooperação, trocas justas, divisão das despesas, trabalho livre em prol do bem-estar...) cruciais para se superar a crise atual. Para passar de uma “economia de sempre” e de “mercantilização de tudo” para uma economia do cuidado é preciso igualdade em todos os níveis, tanto na prática como nas representações.
Jean gadrey é professor honorário de economia em Lille, co-presidente do Forum pour d’autres indicateurs de richesse (FAIR). Seu blog: http://alternatives-economiques.fr/blogs/gadrey

Notas do autor:
(1) Nicky Le Feuvre, Monique Membrado e e Annie Rieu, Le femmes er l’université em Méditerranée, Presses universitaires du Mirail, 1999
(2) Produto Interno Bruto: Fluxo de bens e serviços produzidos anualmente na esfera monetária.

Texto original em francês 
Tradução por Andressa Inácio
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NOTA DA CHATA: Esse texto foi publicado na Les nouvelle news, revista francesa pró-igualdade de gênero (pra quem ta se aventurando no francês, recomendo as matérias delxs). Les nouvelle news é, de fato, uma inovação no campo de mídia, pois, se propõe dar mais voz às mulheres (e também aos homens) para se discutir política, economia e sociedade no viés de análise de gênero. Durante minhas pesquisas economicistas me deparei com esse texto e achei genial, como não encontrei tradução em lugar algum, tomei liberdade de fazê-lo.

Um comentário:

  1. Só para dizer que amei o texto e que concordo muito com ele. E uma informação, Françoise Héritier é umA antropólogA francesa! É sempre bom lembrar porque mesmo nas universidades, a definição do cânone francês não a inclui, muito embora seus trabalhos tenham sido revolucionários à época de publicação.

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