Chegava
e não gostava de chegar, era sempre novamente, como ontem. Sapato perto da
porta, casaco fora do lugar. Sentou-se à mesa vazia, puxando para perto de si o
jornal ainda fechado, talvez as palavras flutuassem até o café e deixassem-se
beber, não havia tempo para ler nada. Contou no relógio, três minutos, era o
que tinha para gastar ali, sozinha. Esticou os braços, foram bem alto, tentando
tocar as ideias que fugiam pedacinho a pedacinho, para grudar no lustre branco.
Era hora, baixou, fechou, pulou, correu, abriu, chuveirou a água sobre o corpo
de pêlos em pé.
Seis
minutos para isso, mais cinco ou seis vestindo, penteando, escovando,
perfumando, não, no máximo pôr um par de meias listradas que agasalhavam bem.
Voltou à mesa de café e se ocupou pelas próximas cinco horas. Dormia, acordava,
saía, trabalhava, chegava, cafeava, banhava, ocupava, dormia.
Numa
dessas repetições não encontrou o jornal, estava um livro e se perguntou como
chegara aquilo até aqui, afinal, pernas temos nós e os bichos. Coisas, ainda
não. Era um cansaço ter de ver isso. Só tinha um chapéu mal desenhado que já
havia visto antes. Onde? Lembranças pueris, devem ser de quando os sapatos eram
bicolores... Não, longe demais. Foi logo por esses tempos de quarenta e cinco.
Nada de chapéu, era uma jibóia engolindo um elefante, falou alguém num buraco
desses que levam à esquizofrenia, vinha de dentro. Se ouviu e se falou, talvez
se você soubesse de algo, realmente conseguiria estar em algum lugar.
Resolveu-se
mudar, caiu na desordem do novo, o caos de quem recebe ar nos pulmões pela
primeira vez.
Comprou
livros de auto-ajuda e culinária, testava receitas para ser feliz enquanto uma
torta de maçã e canela crescia no forno. Tentou mais muitas vezes até
conseguir. Descobriu que era multifacetada e o quanto de prazer se dava ao
trocar os sapatos de lugar, banhar por duas horas assoprando espuma, não
esperar o atraso do ônibus, ir à pé, conversando com os passantes pelo caminho.
Aprendeu sobre o ato de ir em liberdade, sem preocupar-se com o tempo; viajou,
pelo Tibete e Butão, França, Escócia, Chile, China, Conchichina. Aprendeu sobre
arte renascentista e a pintar girassóis. Conheceu as filosofias espirituais do
Oriente e decidiu não ter religião. Leu diversos autores clássicos e renomados,
quis escrever para crianças. Fez aniversário na Namíbia e cantou músicas numa
língua que não sabia. Teve casos e noitadas, bebeu até cair e se levantou com o
café. Experimentou cafés de diversos lugares, testando sabores e cheiros.
Visitou pontos turísticos e o próprio quintal, começou uma plantação de alecrim
e cantava para os gatos. Compôs uma música famosa e fazia a previsão do tempo.
Chorou, se entristeceu, ficou na fossa e afundou suas mágoas com o vizinho.
Levantou nos dias seguintes e não teve medo de abrir a janela. Trabalhou
diversas noites, mas guardou os feriados. Andou, andou, pulou e caiu, sempre
levantou. Foi quando percebeu, só tinha trinta.
Numa
das chegadas a todos os lugares que foi, viu-se possuinte da mais serena
alegria, a vontade de passar por outros mundos, e continuar. Não titubeava em
permanecer viva.
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