Fim do recreio, o mundaréu de alunos retorna, pródigos como só estudantes sabem ser. Eu nos treze anos, afundada no livro da vez. No aniversário recente havia ganho da minha madrinha mais um modo de deslizar pelas horas incovenientes. Lia com fome e sequer percebi o professor invadir a algazarra da turma. "Mulheres que mudaram o mundo, livro interessante... e por acaso você acha que alguma mulher mudou o mundo? Me dá um exemplo só, que seja palpável". - Ele me desafiou com um sorriso nos olhos, não fazia por mal, queria instigar, a filosofia tinha mania de aulas assim, perguntando. - "Ué, a gente pode começar pela sua mãe, sem ela não haveria sequer mundo pra você".
Eu acredito no que respondi. E ainda hoje olho pra esse livro com carinho; Marie, Gabriela, Isadora e Simone se enraizaram nas minhas ideias, só escrevo sobre mulheres e sob o signo delas. Minha genealogia de alma e sangue é marcada por elas, das melhores e piores maneiras possíveis e não houve felicidade maior quando lá pelos quinze percebi que abandonava as semelhanças da infância com meu pai e ganhava os tons e as maçãs do rosto de minha mãe.
Combinamos as chatas de falar sobre mulheres, uma espécie de coluna sobre as que nos inspiram, emocionam, que nos tornam mulher. Venho humildemente declarar minha admiração a Aung San Suu Kyi, uma senhora de olhar longilíneo, que me parece uma força da natureza, pelas beiradas se firma e põe a baixo o mundo com apenas um sopro.
Suu Kyi passou quinze anos em prisão domiciliar, ganhou o Nobel da Paz em 1991 e lidera o partido de oposição (Liga Nacional pela Democracia - LDN) ao regime ditatorial e militar instalado em seu país desde 1962. Entender sua história é aprender sobre a história da própria Birmânia (atualmente Myanmar), com o cuidado de não simplificar a luta de milhares em apenas uma pessoa, é claro.
Em 1947, Aung San, pai de Suu Kyi e um dos líderes da independência birmanesa, foi assassinado. Ele morreu sem ver a colônia se tornar livre do Reino Unido e sua filha cresceu para ver a Birmânia ser massacrada novamente, mas quem sabe, viverá ainda tempo suficiente para ver os frutos de sua resistência pela democracia. A mãe, Khin Kyi, foi nomeada embaixadora na Índia em 1960, e para lá seguiu toda a família que se resumia a elas duas e Aung San Oo, irmão mais velho de Suu (o outro irmão, Aung San Lin, faleceu aos oito anos). Em 64 Suu graduou-se em Ciência Política na Lady Shri Ram College, em Nova Délhi. E seguiu para Oxford, na Inglaterra, onde continuou os estudos na St Hugh's College, graduando-se em Filosofia, Ciência Política e Economia em 1969.
Terminada a faculdade, morou em Nova Iorque, trabalhando na ONU por três anos. Em 71 casou-se com Michael Aris, estudioso da cultura tibetana e que já havia vivido em Butão (para quem não sabe, um país bem pequenininho embaixo da China, mas fan-tás-ti-co). Em 72 nasceu seu primeiro filho e em 77 o segundo, e apesar da história política da família, Aung San Suu Kyi era uma mulher bem convencional. Foram mais de quinze anos de vida "normal" e ainda que ela soubesse da própria importância como herdeira política do pai em seu país, levava uma vida estável e tranquila longe da Birmânia.
Aqui cabe questionar um pouco sobre as escolhas. Por que escolher o país ao invés da família? Por que tomar para si uma responsabilidade que não era obrigatoriamente sua? Por que não seguir longe de tantos conflitos políticos? Com todas as conquistas feministas no último século e as possibilidades hoje de ser mais que mãe e esposa, enfrentamos diariamente dúvidas parecidas (geralmente não na proporção de Suu, é claro) e isso é perfeitamente aceitável. Mulheres que optam por ser mães e ter uma carreira profissional arcam com todo o estresse e dificuldades em ter jornadas duplas, triplas, por aí vai... Mas existem também as que decidem ser mãe e esposa, donas de casa. E as que escolhem casar com a profissão e não ter filhos. Essas duas últimas são as mais criticadas, creio eu, como se suas escolhas as limitassem a não ser "mulher de verdade". Isso me parece o cúmulo do autoritarismo. Quem raios pode definir o que é ser mulher de verdade? Cada qual é juiz de si mesmo e deve arcar com as próprias decisões. Sanções sociais acontecerão sempre, independente do caminho que você tomar, mas não podemos nunca esquecer que ao escolher, tomamos as rédeas de nossas próprias vidas. Além de ser possível transformar a cultura de coercitividade e patrulhamento da vida alheia, dá pra ensinar aos outros sobre respeitar escolhas (pelo menos tenho a esperança que isso seja possível).
Mas voltando a história de Suu. Em 88 sua mãe teve um AVC e ela voltou à Birmânia. Fervilhava uma revolta contra a ditadura militar (que estava lá desde 62, pessoal, 62!). Na Revolta 8888 (porque o maior protesto foi dia 8-8-1988) foram mortos mais de 5 mil civis pelo governo liderado por Ne Win. Como estava no hospital cuidando da mãe ela pode ter contato com muitos dos sobreviventes e envolveu-se de imediato com o movimento pró-democracia. Em Setembro foi fundado o partido do qual ela seria líder, a Liga Nacional pela Democracia. Suu viajou pelo país pregando a desobediência civil e em dezembro sua mãe veio a falecer. E em 89 Suu Kyi é presa pela primeira vez, ficando encarcerada na residência que fora da família para que não se candidatasse às eleições convocadas pelo novo governo militar. A LND teve vitória de 81% dos cargos nas eleições de 1990, mas o sob a ditatura das forças armadas o resultado não foi reconhecido.
O marido de Suu, Michael Aris começa ainda em 89 um movimento de tornar público internacionalmente o que se passava na Birmânia, a prisão de sua esposa e os horrores da ditadura. A resistência civil e pacífica realizada por Suu juntamente com os esforços de Michael levaram-na a ser laureada com o Nobel da Paz em 91. O movimento por sua libertação cresce, ela se recusa a abandonar o país porque sabe que não lhe seria permitido retornar. Até 95 foi permitido a Aris visitá-la (ao todo cinco vezes), ainda nesse ano ela é solta, mas por pouco tempo e a proibição de visitas torna-se mais forte. Em 99 Michael veio a falecer de câncer sem se despedir da esposa, ele mesmo pediu que ela permanecessem na Birmânia e não desistisse de sua caminhada pela liberdade do país. Em entrevista anos depois Suu falou de como aquele momento foi crucial, mas que não lhe restavam dúvidas do que era o certo a se fazer.
Foram mais de 15 anos de prisão domiciliar, mas em 13 de Dezembro de 2010 Aung Sang Suu Kyi era livre novamente. Aquele 20 de Julho de 1989 estava longe, o corpo já não era mais o mesmo, mas a alma estava intacta, inquebrantável.
A partir de 2007 o Conselho de Segurança da ONU começou a considerar os crimes contra os direitos humanos em Myanmar um problema de paz para a região, sendo possível pressionar mais ainda o governo militar, que hoje ensaia uma possível democratização, mas é tudo muito incerto. Em 1° de Abril de 2012 foi eleita deputada pela LND. E continua sua luta acima de tudo pela democracia, além da solução dos conflitos étnicos e sociais do país. Conhecida pelos discursos arrebatadores, teve muitas falas divulgadas e uma de suas frases mais famosas é sobre o medo:
"Não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem, e o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele".
Em 2011 foi lançado o filme "The Lady", do diretor Luc Besson, relato que apesar de focar muito na relação de Suu e Michael (ao meu ver, pelo menos), leva às telas uma história emocionante e inspiradora. Aqui o link para download e a seguir, o trailer:
E esse é um documentário (só achei em inglês) que conta maiores detalhes, principalmente sobre a libertação de Suu em 2010 e a pressão internacional, além de trazer momentos especiais, como visitas do filho:
- Prêmio Raft (1990)
- Prêmio Nobel da Paz de 1991
- Prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento (1990)
- Prêmio Jawaharlal Nehru para a Compreensão Internacional, concedido pelo governo da Índia (1992)
- Prêmio Internacional Simón Bolívar, do governo da Venezuela (1992)
- Cidadania honorária do Canadá.
- Medalha Wallenberg (2011)
- Canção "Walk On", do U2 em 2000.
- Canção "Unplayed Piano", de Damien Rice e Lisa Hannigan em 2005.
* A frase "Acho a liberdade mais importante que o pão" é de Nelson Rodrigues.
"Não lhe restavam dúvidas do que era o certo a se fazer". Eis o que move o agir com paixão: fazer o que acha certo.
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