No ano passado, decidi
fazer uma viagem curta ao Uruguai, esse país tão perto e tão longe de nós. Como
grande parte das viagens que fazemos sozinhos, andei pelas ruas, observando as
pessoas e as composições que interagem com a cena urbana montevideana. E, ainda
que contasse com poucos dias, explorei meu desejo de circular por espaços
dentro e fora dos inúmeros roteiros turísticos entregues aos que chegam de
navio pelo Río de La Plata, numa travessia de pouco mais de três horas desde
Buenos Aires.
Foi durante uma dessas
caminhadas que encontrei uma série de stencils, todos numa só parede da
simpática “Calle Santiago de Chile”, no bairro Sur, próximo ao centro de
Montevidéu, bucólico por suas casas ainda resistentes às especulações
imobiliárias que não são, infelizmente, uma idiossincrasia nossa. Extremamente
interessada e uma confessa entusiasta dessa interferência gráfica na cena
urbana, fotografei logo as seguintes frases: “El problema es que pienses que mi
cuerpo te pertenece”; “Quién te enseña a ser como mujer?” e a também encontrada
nas ruas de Buenos Aires, “Nosotras parimos, nosotras decidimos”. Prato cheio
para quem divide as paixões pelos stencils com as discussões sobre o feminino e
suas performances, escolhi essa passagem de minha memória afetiva não mais tão
recente para dar início a este texto, minha primeira vez nas Chatas!
Tudo poderia ser só
mais um amontoado de megas que guardamos em nossos celulares moderninhos.
Porém, algumas perguntas transbordam do grafismo encontrado pelas ruas – e
creio que para isso são pensados os stencils – e nos acompanham, questionando-nos
sem parar. Isso é bom: bom porque incomoda, bom porque sacode, tira o pó,
sacode a poeira.
Quem nos ensina a ser
como mulher? Nossas mães, nossas avós, nossas professoras? A revista
“Capricho”, quando adolescente, ou as variações da “Claudia” na vida adulta?
Não sei. Não são. Aos 32 anos, com uma série de “crenças e adereços” que me
fazem ter de enfrentar olhares não muito agradáveis, penso que essa pergunta
continua sendo respondida com um riso sarcástico, feito de variações entre
bigodes, barbas e cavanhaques. Desde pequeninas, às meninas são dadas bonecas,
casinhas, filmes e roupas que envolvem um arquivo mítico afetivo onde princesas
esperam príncipes para livrá-las da solidão da masmorra, do castigo da bruxa,
da maçã envenenada.
Entre maçãs podres e
proibidas, prefiro Eva, voto em Lilith e me apelido de Yoko Ono. Não pode ser –
sendo, pois o tempo da mulher se conjuga no gerúndio – que ainda leguemos um
projeto de vida à presença masculina e, quando digo isso, não estou pensando
num companheiro, estou me referindo à figura do “tutor” à qual muitas mulheres
são criadas para encontrar. Entre casais simbióticos e famílias de comerciais de
propaganda, penso na crueldade que é ter de ensinar para uma criança de 3 anos
que sua família é “diferente”, quando o que se desenha como “normal”, em grande
parte de nosso contexto, é uma violência marcada na figura de um pai que se
apresenta como mandão, uma mãe sem opinião própria e filhos que crescem sem a
prática da alteridade, desconhecendo o outro. Nessas famílias, os meninos são
ensinados a comprar camisinhas, andar com elas na carteira, mostrar para os
amigos uma vida sexual que, muitas vezes, nem sai da saudável prática no
banheiro. As meninas são, para gente assim, “as cabritas soltas”, cujo prazer
também é entregue aos dedos e ao rei pênis desses garotinhos, os “bodes”.
Masturbação feminina, em muitos lares, é nojo, perversão, o que só se discute
entre repressões de casos “que ouviram falar”, porque, convenhamos, sexo é um
assunto que só se realiza na cama, na sala de jantar não se fala disso nessas
casas.... e quantas casas são assim, quantas “pessoas da sala de jantar” estão
entre nós e, infelizmente, de vez em quando, frequentam nossas camas também.
Nas escolas, o cenário
não parece tão diferente. Ainda vemos, desde muito pequenininhos, as
brincadeiras destinadas às meninas e aos meninos, endossadas pela “certeza”
biológica de que meninos são mais brutos, têm mais energia, por isso devem
fazer futebol (sic, sic, sic!), enquanto as belas princesinhas da “Disney
brasuca” fazem balé. Não dá, só de pensar nisso (e quando digo isso
infelizmente não estou fora de meu tempo, relembrando o que passei na infância.
“Quem me ensinou a ser mulher” sabia muito bem como me (des)educar pra esse
mundo esquizofrênico que sou obrigada a ouvir nas reuniões do maternal onde meu
filho estuda), tenho vontade de sair correndo.
Saio correndo, faço
desse discurso meu melhor remake de “Corra, Nanda, corra”. Afinal, Clarice já
nos alertava que a “liberdade ofende”, e optar por ser livre implica aprender a
dialogar com a indiferença, essa voz monocórdia em coro entoado pelos pais e
mães das cabritas que, aliás, nunca foram minhas coleguinhas. Eu brincava com
meninos. E, dessa opção de quem cresceu ao som de “eu sou free”, hit máximo das
mães progressistas dos anos 80, me divorciei aos 29, após um casamento de 6
anos, naquele momento com um bebê de apenas 10 meses. Hoje, compartilho a
guarda de meu filho com o pai dele, com quem, por lucidez, tenho um diálogo de
respeito e carinho. Continuamente, sou obrigada a ouvir comentários a respeito
de minha opção por criá-lo num lar, numa família considerada diferente, o que
as pessoas traduzem na presença de um pai, logo engatando com a absurda ideia
de um novo casamento como prótese da figura amputada. Sempre que ouço isso –
creiam, não são poucas, nem raras – penso no perigo que há naquilo que se
esconde nessas falas. Nesta perspectiva, a presença de um homem numa casa daria
o norte e a proteção que eu, semi-mãe solteira, não seria capaz. E, realmente,
não sou nem desejo ser. Se esse é o “norte”, prefiro que meu filho, que não é
bode, aprenda a desenhar sua própria bússola da transgressão e a trilhar
caminhos muito mais divertidos, penso.
Quem nos ensina a ser
como mulher? Não sei, repito. Entretanto, tenho pensado cada dia mais que são
aqueles (múltiplos, mulheres e homens) que pensam também no corpo como posse,
ideia presente num dos stencils da calle Santiago. E, entre uma imagem e outra,
prefiro acreditar que “Nós parimos, nós decidimos”, e a revolução começará em
casa: na sala de jantar, na cozinha, no banheiro, a caminho das portas, das
ruas que esperam por mais intervenções em seus cenários e por mulheres mais
empoderadas e homens mais sensíveis.
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Fernanda Garbeiro, mais conhecida por Nanda, carrega em si aquela força de ser o que se é, contagiando outras almas a dançar sem música. Com ela aprendi muito sobre ser mulher, especialmente sobre não se preocupar com as medidas, receitas e prescrições. Me ensinou a desbravar a literatura e a ver com olhos mais livres, veio falar hoje no Chatas para abrir o Dia Internacional da Mulher, porque antes de comemorar qualquer coisa, é importante nos perguntarmos "afinal quem te ensina a ser mulher?"
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